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O ALBATROZ

 

Quem leu as magníficas Flores do Mal certamente se lembra do antológico poema O albatroz. Trata-se nele de uma daquelas aves régias que acompanham os navios em alto mar. Belo e orgulhoso, o albatroz não tem um pingo de prudência e deixa-se apanhar pelos marujos, que o maltratam sem dó nem piedade:

... Uns metem no seu bico o fumo, os outros, rindo,

Imitam a mancar o trôpego voador.

Onde estão sua elegância e seu brio? Fora do espaço aéreo, o albatroz fica débil e desajeitado, rodopiando nas sujas pranchas do convés, sob uma cruel saraivada de palavrões e risadas. O desfecho do poema é imprevisto. O autor não se conforma com o desastre desse "soberano do azul" e exclama indignado:

O vate é semelhante ao príncipe dos ares

Que escapa à flecha e toma o temporal por lar;

Entanto cá no chão, no meio dos vulgares,

As asas de gigante impedem-no de andar.

É ele mesmo, o poeta menosprezado pelos contemporâneos e idolatrado, tal e qual tantos outros artistas, depois de morto (ou, sabe-se lá, em função disso), cujo alter ego se vislumbra na gloriosa ruína da ave arrancada de seu ambiente natural. É ele mesmo, Charles Pierre Baudelaire, cujo nome dispensa ociosos comentários.

A vida de Baudelaire foi uma série ininterrupta de desventuras e decepções, ou melhor, uma só decepção contínua. Nascido numa família rica e influente (seu pai dirigira, em tempos de Napoleão, uma das repartições do Senado Imperial), ele podia alcançar o ápice da carreira pública, tornando-se político ou burocrata de alto nível, mas preferiu a poesia, ocupação que boa parte da humanidade considera, desde que o mundo é mundo, se não totalmente inútil, ao menos desprovida de qualquer seriedade. Estava muito apegado ao pai, do qual herdara, aliás, o interesse pelas artes, mas perdeu-o, ainda em criança, e teve de conviver com o padrasto, oficial do exército francês, que chegou a mandá-lo, após inúmeras brigas, para as Índias, na esperança de que, afastado da boemia urbana, o rebelde enteado abrisse mão de seus devaneios artísticos, sem antever que o périplo lhe inspiraria, entre outros, o supracitado poema. Gostava da vida folgada e tinha, diga-se de passagem, condições de levá-la, mas, revoltados com suas gastanças irresponsáveis, os familiares decidiram colocar todos os bens dele sob a tutela cautelar, de modo que, em lugar da vultosa herança paterna que esbanjava a torto e a direito, o poeta ficou com a humilhante mesada de 200 francos, trocando seus ternos de dândi por uma blusa de proletário e comportando-se, às vezes, como um morador de rua. Lutou nas barricadas de Paris durante a insurreição popular de 1848, mas esta foi truculentamente reprimida pelo governo burguês. Apaixonou-se pela Vênus Negra, jovem mulata que fazia pequenos papéis nos teatros parisienses, mas o relacionamento do casal transcorreu cheio de escândalos e traições, destruiu a ilusão de Baudelaire acerca do gênero feminino e, como se devia esperar, resultou numa dolorosa ruptura. Apesar das imensas dificuldades financeiras, publicou em 1857 sua obra-prima, As Flores do Mal, mas o livro, além de aniquilado pela imprensa – "... é um hospital aberto a todas as demências do espírito, a todas as podridões do coração; ainda seria bem se fosse para curá-las, mas elas são incuráveis", escreveu sobre ele um renomado jornalista –, enfrentou uma ferrenha perseguição judicial, sendo o autor multado por "ofensa à moral religiosa" e "ultraje aos bons costumes", e obrigado a resignar-se à supressão de alguns textos que os magistrados tinham achado obscenos: sentença revogada apenas em 1949, graças à insistência da Sociedade dos Homens de Letras que não se esquecera de seu sócio polêmico. Tentou candidatar-se à tradicionalíssima Academia Francesa, mas a vaga que disputava acabou ganha por um aristocrata cujos talentos literários eram bem questionáveis. Já no final da vida, desesperado com a insensibilidade dos leitores, viciado em ópio e álcool, acometido pela temida e incurável na época sífilis, sem um tostão no bolso, viajou para a Bélgica, pensando que lá conseguiria lançar suas obras completas e, talvez, abrandar a miséria diariamente aturada, mas os belgas se mostraram, em várias ocasiões, mais insensíveis ainda que os franceses. Emudeceu, ficou hemiplégico em decorrência da horrível doença e faleceu, aos 46 anos, nos braços de sua velha mãe. Havia-lhe perdoado o segundo casamento, bem como todas as desavenças passadas; quem sabe se perdoara, da mesma maneira, os críticos ignorantes e os juízes faltos de compaixão. O poeta foi enterrado na presença de uns poucos amigos, igual a um pobre anônimo. Caído dos céus cobiçados, o albatroz se afundou no mar da estúpida indiferença humana.

O que aconteceu depois da precoce e trágica morte de Baudelaire? Aquilo que costuma acontecer, como que por escárnio de Nêmesis, com a maioria dos gênios confinados nos estreitos moldes da sociedade consumista, que não lhes dá nenhuma atenção em vida e tende a transformá-los postumamente em objetos de culto, isto é, de consumo. Assim se explicam tanto as colossais tiragens das obras baudelairianas editadas, inclusive em formato de luxo, no século XX, quanto o presunçoso monumento erguido no túmulo do poeta por ordem do Ministro das Belas-Artes da França. Pois é, diria o próprio Baudelaire com seu sarcasmo habitual, "a poesia é uma das artes que mais rendem, mas, ao mesmo tempo, uma espécie de investimento em cujos lucros (...) só se toca tarde". Avaliam-se tarde, sim, as riquezas espirituais, porém tarde e nunca, reconhecimento eterno e glamour instantâneo, são coisas distintas. Dorme em paz, grande poeta maldito; é sorte nossa que teu legado não se limite, nos dias de hoje, aos salões e academias de letras, embora não sejam numerosas as pessoas que possam repetir, ao lerem esses teus versos amargos, perturbadores e deslumbrantes, as palavras de Carlos Pena Filho afirmando:

... que existe alguém

no mundo, cem

anos após,

que não vaiou

e nem magoou

teu albatroz.

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