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Vladímir Soloviov

 

Conferências sobre a humanidade divina

 

         Conferência primeira

 

Eu abordarei as verdades de uma religião positiva, assuntos muito distantes da consciência atual e alheios aos interesses da civilização contemporânea. Os interesses da civilização contemporânea são aqueles que não existiram ontem nem existirão amanhã. É permitido preferirmos o que tem igual importância a qualquer tempo.

De resto, não vou polemizar com quem nega, atualmente, o princípio religioso; não vou discutir com os modernos adversários da religião por eles terem razão. Quem nega, atualmente, a religião, digo eu, tem razão, pois o estado atual da própria religião provoca negação, pois na realidade a religião não é o que deve ser.

        

Falando de modo geral e abstrato, a religião vincula o homem e o mundo ao absoluto princípio e núcleo de tudo o que existe. Se reconhecermos a realidade deste princípio absoluto, fica claro que todos os interesses, todo o conteúdo da vida e consciência humana devem ser determinados por ele, que tudo quanto o homem fizer, conceber e produzir de essencial deve depender dele e referir-se a ele. Se admitirmos o núcleo absoluto, todos os pontos do círculo vital hão de ser ligados a ele por iguais raios. Só então é que surgem, na vida e consciência do homem, a unidade, a integridade e a harmonia; só então é que todos os feitos e sofrimentos de sua vida grande ou pequena deixam de ser inúteis e absurdos, transformando-se em acontecimentos racionais e intrinsecamente necessários. É indubitável que este significado universal e central deve pertencer ao princípio religioso, se o reconhecermos em geral; tampouco há dúvida alguma de que na realidade – para a moderna humanidade civilizada e mesmo para quem reconhece, no meio dela, o princípio religioso – a religião não possui este significado universal e central. Em vez de ser tudo em tudo, ela se esconde num recanto muito pequeno e afastado de nosso mundo interno, sendo um dos múltiplos e variados interesses que nos distraem a atenção.

        

A religião contemporânea é uma coisa bem lamentável: a religião propriamente dita não existe como um princípio dominante, como um centro de atração espiritual; o lugar dela ocupa a chamada religiosidade como um humor ou gosto pessoal – há quem tenha tal gosto, há quem não o tenha, assim como uns gostam de música e os outros não gostam.

        

Na ausência do núcleo absoluto, nós temos tantos centros de vida e consciência relativos e temporários quantos são nossos diversos interesses e necessidades, gostos e pendores, opiniões e pontos de vista.

        

Seria supérfluo minudenciarmos a discórdia mental e moral e a falta de princípios que dominam atualmente não só a sociedade inteira como também a cabeça e o coração de cada pessoa: quem olhou, um dia, para si mesmo e ao redor de si, sabe muito bem disso.

        

Essa falta de princípios, essa discórdia são um fato indubitável e óbvio; mas o outro fato indubitável e óbvio é que a humanidade não pode conformar-se com isso, que em todo caso ela busca um princípio que a una e congregue. Estamos vendo, na realidade, que até a moderna civilização ocidental – a civilização que rejeitou o princípio religioso como subjetivo e impotente em sua forma atual – aspira, no entanto, a encontrar, fora do âmbito religioso, certos princípios de coesão para a vida e consciência, a substituir por algo os deuses rejeitados. Se bem que, conforme a convicção predominante, todos os fins e princípios da existência humana se reduzam à realidade existente, à presente existência natural, e que toda a nossa vida deva ser confinada "no círculo estreito de impressões terrestres", a civilização contemporânea se esforça para achar, mesmo neste círculo estreito, um princípio que una e organize a humanidade.

        

Por essa aspiração de organizar a humanidade fora do âmbito meramente religioso, de instalar-se e consolidar-se na área dos interesses temporários e finitos é que se caracteriza toda a civilização contemporânea.

        

Hoje em dia, há duas doutrinas em que essa aspiração se revela mais consequente, consciente e completa: uma delas – o socialismo – refere-se por excelência aos interesses práticos da vida social, e a outra – o positivismo – tem em vista a área teórica do conhecimento científico.

        

Nem o socialismo nem o positivismo têm relação direta, negativa ou positiva, com a religião: eles querem apenas ocupar o vazio que a religião deixou na vida e no conhecimento da moderna humanidade civilizada. Sob essa ótica é que se deve avaliá-los.

(...)

 

Vladímir Serguéievitch Soloviov (1853-1900), filósofo religioso e poeta russo, professor da Universidade de Moscou. Principais obras: Crise da filosofia ocidental (1874), História e porvir da teocracia (1886), A Rússia e a igreja universal (1889), O sentido do amor (1892-1894), poemas de inspiração simbolista, traduções dos diálogos de Platão.

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