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O SOL DA POESIA RUSSA

 

Todo o mundo conhece Alexandr Púchkin. Foi o maior poeta russo do século XIX e, não falta quem o afirme, de todos os tempos. Foi o autor das obras mais lidas naquelas paragens: peçam a qualquer russo, nem que seja uma criança, para recitar algum verso puchkiniano, e ele fará isso sem gaguejar. Foi o criador do vernáculo russo moderno, já que a norma culta da língua usada na Rússia de hoje remonta ao vocabulário dele. Gênio, perfeito, iluminado – todos estes epítetos se aplicam, merecidamente, ao escritor Púchkin. Poucos sabem, no entanto, como era o Púchkin-homem, aquele indivíduo que os amigos e admiradores chamavam de vate, e os desafetos, de vagabundo que por acaso tinha escrito lá umas bagatelas.

Para começar, era mulato. Pois sim, não estou delirando! Seu bisavô materno Aníbal, etíope, foi trazido à Rússia como escravo. Presenteado ao imperador Pedro, o Grande, ganhou alforria, estudou ciências exatas na França e fez uma respeitável carreira de engenheiro militar. O bisneto se parecia singularmente com ele; quem duvidar disso, consulte o notório quadro de Orest Kiprênski(1).

Filho de uma família abastada, Púchkin passou seis anos no famoso Lycée de Tsárskoie Seló (Vila Czarina), colégio interno que formava a elite do Império Russo. Datam daquele tempo suas primeiras experiências poéticas, inclusive um brilhante poema em francês, idioma que dominava como o nativo, no qual esboça seu perfil carismático – vrai démon pour l’espièglerie(2)... A vocação literária de Púchkin se revelou muito cedo. Garoto de quinze anos, declamou suas Memórias de Tsárskoie Seló num exame colegial, e o convidado de honra Derjávin(3), astro da poesia russa, veio abraçá-lo com lágrimas de emoção. Outro renomado poeta, Jukóvski(4), mandou para ele seu retrato com a dedicatória: Ao discípulo vencedor do mestre vencido.

A vida de Púchkin se dividiu entre duas paixões avassaladoras. Com igual veemência, ele compunha versos e cortejava mulheres. Tinha namorado diversas aristocratas e camponesas, casando-se, afinal, com a bela Natália Gontcharova, que lhe daria quatro filhos, herdeiros de carne. E produziu inúmeras obras, herdeiras de espírito, que consagrariam seu nome. Deixou para a posteridade Evguêni Onêguin, romance lírico em que sua abrangente visão do caráter russo fica eternizada, e Boris Godunov, drama monumental sobre o poderio que corrompe a alma dos poderosos, Pequenas tragédias, sentença irrefutável à avareza, inveja e outros pecados humanos, A filha do capitão, novela de cunho histórico sobre o levante popular contra a tirania dos czares, e, claro, poemas de vários estilos e gêneros, com especial destaque para os de amor.

Amei-vos. Meu amor talvez subsista

No fundo de minha alma, bem ou mal.

Contudo, não temais que eu nele insista:

Não quero que vos aflijais com tal.

Amei, desesperado de ciúme,

Com toda a timidez que um homem tem,

Mas tão sincero como queira o nume

Que venha a amar-vos inda mais alguém.

É pena os leitores lusófonos desconhecerem a maioria dessas pérolas de inspiração! As barreiras linguísticas são, muitas vezes, insuperáveis...

Por um lado, a poesia proporcionou a Púchkin louros imorredouros; por outro lado, rendeu-lhe, quando satírica e subversiva, uma legião de inimigos. Por causa das epigramas, que escarneciam as altas-rodas de São Petersburgo, o poeta chegou a ser expulso da capital e morou alguns anos no sul da Rússia. Ao longo de sua vida, envolveu-se, sem sombra de exagero, em vinte e um duelos, dezessete dos quais terminaram em pazes e quatro foram levados a cabo!

Versado em meia dúzia de línguas ocidentais, Púchkin lia Horácio(5) e Goethe(6), adorava Byron, traduzia Ariosto(7) e André Chénier(8). Poeta por excelência, destacava-se pela amplitude da sua erudição: tanto a filosofia dos iluministas quanto o folclore dos sérvios despertavam a mais viva curiosidade dele. Parece inacreditável, mas é também a Púchkin, tradutor de uma das comoventes "liras" de Tomás Antônio Gonzaga, que os russos devem seu precoce conhecimento da poesia brasileira.

A morte de Púchkin foi trágica. Corriam rumores de que sua esposa tivesse um caso com Georges D'Anthès, cavalheiro francês que viera caçar aventuras na Rússia, e o poeta resolveu lavar a desonra com sangue. O último duelo aconteceu em pleno inverno, num bosque coberto de neve, tendo desfecho fatal: Púchkin foi baleado no abdômen e faleceu dois dias depois. E seu assassino voltou, impune, para a França e viveu mais quase sessenta anos; dizem que quis almoçar, já ancião, num restaurante parisiense visitado pelos imigrantes russos, e, vendo-o entrar, estes lhe viraram unânime e ostensivamente as costas. "O demônio se meteu nisso..." – contava D'Anthès sobre o seu duelo com Púchkin. Por certo, o mesmo demônio que costuma tornar a mediocridade longeva!

A existência física do poeta acabou, mas sua glória ficou para sempre.  Apelidado pelos contemporâneos de "sol da poesia russa" e venerado, na época soviética, a par dos líderes do país, Púchkin chegou aos nossos dias como integrante do currículo escolar e herói das lendas urbanas, protagonista das teses e anedotas, personagem dos filmes e grafites juvenis. Portanto não se surpreendam se, perguntado quem vai comprar pão ou pagar contas do mês, seu interlocutor russo responder com risadas – Púchkin! Esse é um dos modos de prestar homenagem ao ídolo nacional.

 

 

(1) Orest Adâmovitch Kiprênski (1782-1836): pintor russo, famoso, sobretudo, como retratista.

(2) "...verdadeiro capeta de tão travesso" (em francês).

(3) Gavriil Românovitch Derjávin (1743-1816): poeta neoclássico e estadista russo.

(4) Vassíli Andréievitch Jukóvski (1783-1852): poeta romântico, tradutor e crítico russo.

(5) Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C): grande poeta romano.

(6) Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): poeta e pensador, um dos maiores expoentes da literatura alemã.

(7) Ludovico Ariosto (1474-1533): poeta italiano, autor da epopeia Orlando furioso.

(8) André Marie Chénier (1762-1794): poeta lírico francês.

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