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Entrevista concedida a Paulo Mohylovski e publicada na Germina: revista de literatura e arte (Ano VII / Edição 37) em 21 de junho de 2011

 

O POETA QUE VEIO DO FRIO

 

De repente, tomo conhecimento da existência de um poeta russo, nascido na Bielorrússia, chamado Oleg Almeida, naturalizado brasileiro e com um livro de poemas publicado: Memórias dum Hiperbóreo. Impressionado com o vigor dos poemas, de um poeta relativamente jovem – Oleg tem só 40 anos de idade –, resolvi entrevistá-lo. Pelos e-mails que trocamos, fiquei também impressionado com a consciência e a consistência de sua linguagem, rigorosamente dentro da norma culta da língua portuguesa. A entrevista – como eu já esperava – rendeu um conteúdo forte e vibrante. Aproveitei o seu conhecimento da língua russa para saber de Oleg um pouco mais da literatura daquele país, ainda culturalmente tão desconhecido. Descobri que Oleg acha Yessênin o maior poeta russo de todos os tempos, superando o cultuado Maiakóvski. Para Oleg, Maiakóvski faz uma poesia do grito, enquanto que Yessênin fala da própria alma russa. Atualmente, Oleg Almeida mora em Brasília. Da capital federal, o poeta lembra que a cidade o curou de vãs ilusões e que por isso se sente eternamente grato a ela [Paulo Mohylovski]. 

 

ENTREVISTA: OLEG ALMEIDA

por Paulo Mohylovski 

 

A POESIA RUSSA

 

Paulo Mohylovski – Os poetas russos – apesar dos esforços dos irmãos Campos ou de Boris Schnaiderman – nunca estiveram realmente em voga no Brasil, como os poetas franceses ou de língua inglesa. A não ser Maiakóvski, que extrapolou todas as fronteiras. A que você atribui esta distância? Por que o poeta russo não fala à alma do poeta brasileiro? É apenas questão de desconhecimento da nossa parte?

Oleg Almeida – Você tem toda a razão: a literatura russa não está em cartaz no Brasil. Quando alguém me diz que gosta dela, fico desconfiado. Será que poderíamos apreciar ou desprezar o que, de fato, não conhecemos? As editoras brasileiras só dão espaço àqueles monstros sagrados – Dostoiévski em prosa e Maiakóvski em poesia – que, feitas as contas, não representam o que chamaria de identidade russa. Quem quiser abrangê-la, que leia romances e contos de Turguênev, Leskov, Gontcharov, Kuprin, e poemas de Nekrássov e Yessênin; em resumo, livros que, com raríssimas exceções, nunca foram traduzidos para o português. Aí surge outro problema sério que complementa o patente desinteresse das editoras – a barreira linguística muitas vezes insuperável mesmo para os tradutores mais experientes. Veio-me agorinha à cabeça o poemeto Quantos são neste mundo os gatos... de Serguei Yessênin. É bem curto, apenas 16 versos, e aparentemente simplório, mas nem por isso me encarregaria de traduzi-lo! Contando da sua infância, o poeta se lembra da casa rústica dos avós e de um gato que pulava, "feito um tigrinho", atrás do novelo caído no chão, e depois, sem transição alguma, conclui que "tudo passou", sua avó faleceu, e da pele do pobre gato fizeram uma "chapka", isto é, um chapéu para se usar no inverno, a qual foi gasta e jogada fora pelo avô. Lendo esse texto traduzido ao pé da letra, palavra por palavra, o brasileiro perceberá nele uma denúncia da barbárie eslava (tadinho do bichinho, que final triste!) e, possivelmente, ficará decepcionado; por mais exata que seja, a tradução literal não lhe dirá, a ele, um décimo do que o original teria dito a um russo, entende? É que, na realidade, o autor fala de como a vida é breve, de como os tempos mudam depressa, de como a morte se banaliza em nosso cotidiano: temas batidos e, não obstante, inesgotáveis na tradição poética do mundo inteiro... Pois bem, para levar essa transcendental amargura à consciência de um leitor estrangeiro (no caso, brasileiro), o tradutor tem de cumprir uma tarefa quase irrealizável, tentando adaptar a linguagem do interior russo às normas da língua portuguesa. E isso sem mencionar aquelas óbvias diferenças culturais que tornam a distância entre a Rússia e o Brasil maior ainda. Aliás, o mesmo acontece na própria Rússia, cujos leitores acham, por mero desconhecimento, que a literatura brasileira se limita às obras de Jorge Amado e Paulo Coelho.

 

PM – Quem é o maior poeta russo: Maiakóvski ou Khlêbnikov? Ou você considera algum outro maior, talvez, Púchkin?

OA – Em termos da espiritualidade nacional expressa em verso, o maior poeta russo é, sem dúvida, Yessênin: a Rússia ortodoxa e camponesa se reflete nele como num espelho mágico. Em termos da universalidade, da poesia capaz de traspassar as fronteiras de toda espécie, inclusive as étnicas, é Púchkin: imagine um afrodescendente que, em pleno século XIX com seus inúmeros preconceitos, foi apelidado de "sol da poesia russa"! Quanto a Maiakóvski e Khlêbnikov, compará-los-ia a dois titãs derrotados. Maiakóvski criou uma poesia de grito, de contestação, de protesto, uma poesia na qual até hoje se inspiram diversos rebeldes e transgressores, mas não suportou as pressões políticas e acabou disparando um tiro no coração. Khlêbnikov questionou as mais básicas leis do espaço, do tempo e da natureza humana, chegando a proclamar-se "Presidente do Globo Terrestre", porém foi taxado de louco e morreu na miséria – o Globo Terrestre já tinha governos de sobra, e que diabo de líder seria um literato?

 

PM – O que você acha de Marina Tsvetáieva? Você também concorda que ela não é uma poeta valorizada como merece?

OA – Concordo, sim. Tanto a poesia de Tsvetáieva, profundamente lírica e intimista, quanto a sua vida – fuga da Rússia durante a guerra civil, anos de desespero na luxuosa Paris "vestida da testa ao umbigo", regresso à União Soviética indiferente aos escritores da velha escola, início da outra guerra e suicídio na casa alheia, como desfecho de uma tragédia grega – merecem mais atenção dos estudiosos e tradutores. A meu ver, Marina Tsvetáieva é a poetisa russa mais genial e menos conhecida fora da Rússia. Os malabarismos que ela faz com palavras são fantásticos; ninguém ainda conseguiu traduzi-los de modo adequado.

 

PM – Você tem contato com a nova poesia russa? Quem são os melhores poetas contemporâneos?

OA – Vou lhe dizer uma coisa radical... A grande poesia russa terminou em 1996, com a morte de Joseph Brodsky, poeta judeu expulso, por motivos ideológicos, da URSS e galardoado, em 1987, com o Prêmio Nobel pela sua "ecumênica criatividade". Nos dias de hoje, os jovens russos se entusiasmam, principalmente, com o esoterismo e o erotismo. A poesia não faz parte do imaginário deles nem, muito menos, lota os estádios, como na década de 60. Tanto assim que o último remanescente daquela geração de tribunos poéticos, Evguêni Yevtuchenko, mora nos Estados Unidos, e, pelo jeito, a Rússia não está nem aí pra ele.

 

O POETA E A SUA POESIA

 

PM – Acontece de a sua poesia se mesclar de alguma forma com a poesia que você está traduzindo?

OA – É verdade que minha poesia tem várias raízes. Quando adolescente, lia não só os autores do currículo escolar soviético (diga-se de passagem, bastante amplo, pois incluía, além de Almas mortas de Gógol e Guerra e paz de Tolstói, tais obras como OdisseiaHamlet e Dom Quixote), mas também os clássicos greco-romanos, sabe, Anacreonte, Plutarco, Horácio. Mais tarde, estudando as letras francesas na faculdade, descobri os "poetas malditos" com Baudelaire à frente, e as riquezas da poesia francófona em geral, de Jacques Prévert na França a René Depestre no Haiti. Mais tarde ainda, chegou a vez de Camões, cujos sonetos me comoveram pela intensidade da dor existencial, e de Fernando Pessoa com sua múltipla e multifacetada personalidade. Dessa maneira, os meus escritos têm por base os livros que me caíram em mãos bem antes de eu abraçar a carreira de tradutor. O talento em si vale pouco, a menos que venha acompanhado de muita leitura.

 

PM – Esse "eu lírico" do seu livro Memórias de um Hiperbóreo é você mesmo ou é um personagem?

OA – Sim, o Hiperbóreo sou eu mesmo, mestiço soviético que, perdendo sua pátria num cataclismo geopolítico, foi acolhido pelo Brasil. Minha Alexandria é meio Brasília, onde resido há quase seis anos, meio Rio de Janeiro, onde são publicados meus livros. O que me diferencia do meu personagem são os detalhes de ordem pessoal. Por exemplo, não sou empresário; não possuo, ao invés do Hiperbóreo, nenhum negócio lucrativo. Se tivesse dinheiro, fundaria, talvez, uma editora.

 

PM – Qual é a influência de Brasília na sua poesia?

OA – Brasília é uma cidade de duas caras. Por um lado, ela se mostra inóspita e até mesmo cruel a quem disputar seus favores (pergunte aos nordestinos, que têm sido meus vizinhos, se é fácil sobreviver aqui); por outro lado, costuma remunerar generosamente os vencedores dessa competição. Passei a ganhar a vida como tradutor e, pouco a pouco, ingressei nos meios literários do Brasil pelo simples fato de não ter outras opções de emprego na capital. Se trabalhasse, das 8 às 17, num órgão público, não teria lazer nem disposição para me dedicar à literatura, entregar-me-ia à rotina. Nesse sentido, sou vítima de Brasília e, ao mesmo tempo, menino de ouro dela. Escrevi, num dos meus poemas, que Brasília me tinha curado de "vãs ilusões, ensinando o moral dos pioneiros", e que por isso lhe ficaria eternamente grato.

 

PM – Há uma certa melancolia nos seus poemas. Geralmente os poetas têm uma natureza melancólica. A que você atribui a natureza melancólica dos poetas e, mais especificamente, a melancolia que perpassa a sua poesia?

OA – A tragédia, como disse Lúcio Cardozo, é o estado natural do homem. Desde os tempos bíblicos, nosso mundo pulula de injustiças e atrocidades, não é? Uma pessoa comum, uma pele de elefante, não se interessa por elas, tomara que haja comida na mesa, enquanto um poeta com sua sensibilidade fora de série fica abalado. Daí vem essa melancolia particular dos poetas a que você se refere. No meu caso específico, a tristeza entrou em cena com o colapso do regime comunista, nos moldes do qual fui criado e vivi meus melhores anos. Pouco me importavam a suposta falta de liberdades civis e todo aquele papo sobre "o Império do Mal": minha família, se bem que não pertencesse às classes altas, tinha boníssimas condições de vida e nem por sombras temia acabar na sarjeta. Quando o país se desmoronou, primeiro, econômica e, logo em seguida, politicamente, senti-me, bem como milhões de compatriotas, destruído. Podia seguir o exemplo de muitos colegas, que afundaram na depressão e nas drogas, mas escolhi outro rumo, tentei adaptar-me à nova realidade, tornei-me camaleão. Até agora procuro reconciliar o passado feliz com o presente estressante e o futuro incerto. Meus versos ilustram este processo.

 

PM – Há muitas palavras raras nos seus poemas. Elas brotam naturalmente ou você as procura conscientemente? O objetivo é causar um estranhamento no leitor ou a riqueza vocabular faz parte por causa do seu trabalho de tradutor?

OA – Falo um tanto difícil desde mocinho. Na época, aprendi montes de termos cultos para impressionar as garotas (risos)! Não, este meu linguajar não visa surpreender a quem quer que seja, mas tão somente prevenir qualquer tipo de monotonia. Gosto de explorar os mais variados recursos do idioma, léxicos e estilísticos, imitando Flaubert que censurou, um dia, os irmãos Goncourt por terem usado a mesma palavra ("cama", se não me engano) em páginas consecutivas de um romance. Se precisasse, digamos, descrever uma sequência de ações, jamais colocaria cinco "depois" em fila; empregaria "a seguir", "em seguida", "após" ou "posteriormente". Buscando explicar algo mediante uma sentença subordinada, misturaria "porque" com "porquanto" e "pois", e – não tenho medo de arcaísmos – "destarte". Respeito o português a par da língua materna, e confundi-lo com o chiclete redundaria, por minha parte, num erro imperdoável.

 

PM – Há um paganismo nos seus poemas, referência à mitologia grega – mais de uma vez o aspecto dionisíaco é lembrado. Por que isso?

OA – Por causa da influência que a cultura grega – ideias brilhantes e formas perfeitas – tem exercido sobre mim ao longo dos anos. Foi Karl Marx quem caracterizou a Grécia antiga como "a infância histórica da humanidade", cuja "graça eterna" encanta o homem contemporâneo por ser única e incomparável em sua ingênua beleza. Eu também me rendi aos feitiços dela. O pensamento dos gregos não se trancava na mesquinhez dos dogmas pré-aprovados, sua visão de mundo era francamente antropocêntrica, isto é, focada em valores humanos, e sua vida, apesar de toda a precariedade das estruturas técnicas, menos neurótica e, dentro de certos limites, mais harmoniosa do que a nossa. Os gregos falavam de igual a igual com suas divindades, viviam sem sentir culpa de estarem vivendo. Não sou hedonista, até porque não tenho saúde pra isso, mas creio que um pouco desse alegre antropocentrismo, um pouco dessa, diria eu, singeleza pagã, viriam bem a calhar para a sociedade moderna repleta de hipocrisias e complexos.

 

PM – Muitos dos seus poemas podem ser lidos como uma prosa, ou seja, há uma narrativa neles. Como você lida com os limites entre prosa e poesia?

OA – Para mim, a divisão rigorosa dos gêneros literários não existe e, mesmo se existisse, não teria tanta importância. De resto, os escritores de primeira linha trilharam esse caminho há tempos... Eugênio Onêguin de Púchkin e A tentação de Santo Antônio de Flaubert nada mais são que um romance em versos e um poema em prosa respectivamente, e a lista de obras sincréticas está longe de se encerrar. Meu ideal seria uma "menipeia", ou seja, um livre amálgama do dramático e do cômico, do épico e do lírico, das narrativas linear e sincopada, cerebral e emocional, a qual também remonta à Antiguidade clássica. Pretendo levar esse "freestyle" ao absoluto no meu novo livro, ainda em fase embrionária.

 

PM – Como se deu a gênese do seu livro Memórias de um Hiperbóreo? E quais foram os poetas que te influenciaram neste livro?

OA –Hiperbóreo foi escrito em seis meses corridos, entre agosto de 2007 e janeiro de 2008, gastando eu mais dois ou três meses para passá-lo a limpo. Trabalhava como possesso, de manhã, de tarde, de noite; escrevia na minha agenda, no verso das folhas estragadas pela impressora, nos guardanapos do restaurante. Estava inspirado, parcialmente pelas dificuldades que enfrentava dia após dia, mas sobretudo pela compreensão do caráter universal da história, de sua atemporalidade. Meu personagem poderia ser um brasileiro exilado em Cuba nos anos 70 ou, quem sabe, um indiano às voltas com a invernia londrina. O paraíso ficara para trás, de tal sorte que eu não acreditava mais nele; "estava morta a felicidade, mas não acabara a vida": novas perspectivas inesperadas iam-se abrindo, e o livro em gestação se transformava numa provável saída da crise pessoal que vivenciava. Quanto às fontes literárias que contribuíram para a gênese da minha obra, foram duas: Os cantos de Bilítis de Pierre Louÿs e Canções alexandrinas de Mikhail Kuzmin. Não digo que me tenham ensinado alguma coisa ou determinado meu estilo, não; elas me demonstraram a possibilidade de ver o nosso "aqui e agora" com outros olhos, de ser eu mesmo e outrem, de me expressar por meio das alegorias. Ao editar o Hiperbóreo, traduzi ambas as obras, que o haviam antecipado, para o português. Daqui a pouco, elas virão a lume... 

Junho, 2011

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